O pastor evangélico termina o sermão em que clamava por obediência aos preceitos divinos. Apresentou aos atentos espectadores uma leitura inspirada das Escrituras Sagradas, demonstrando que a mão divina pesaria sobre os insubordinados e rebeldes. Girando o globo, encontramos o Sumo Pontífice em vias de publicar sua mais nova encíclica, tida pelos mais renomados cardeais como a salvadora da autoridade da Santa Igreja. Após diversas reuniões entre os líderes do Vaticano, acordaram que a Igreja necessita retomar seu papel de farol entre os homens, já que representa o Governo Divino na Terra. O Papa, preenchido de infalibilidade, estabelece condenações severas aos transgressores da moralidade cristã, infiéis e hereges, por darem lugar ao diabo e desobedecerem a Deus.
É irônico, mas não surpreendente, dado o curso da História, perceber que o Cristianismo predominante tornou-se instrumento de poder e controle social. Irônico por ter sido essa a religião, inicialmente, que inspirou oprimidos e desvalidos a permanecerem na luta por sua dignidade; não surpreendente por ser característica marcante, em todas as religiões, a instrumentalização da fé em favor da dominação sacerdotal. Daí Nietzsche concluir:
Se acontecer que os teólogos, através da «consciência» dos príncipes (ou dos povos), estendam as mãos para o poder, não duvidemos do que, no fundo, sempre acontece: a vontade do fim, a vontade niilista, aspira ao poder…
Para uma religião negativamente niilista, a figura de Deus se mostra como a representação maior da sede de poder sacerdotal. Ao condenarem toda e qualquer desobediência ao Texto Sagrado, estão, na realidade, rechaçando a quebra de sua própria ordem, a perda de seu próprio controle, como o escravo de outrora que, ao insurgir-se contra seu dono, era acusado de afrontar a Deus.
Aqui, valeria a lembrança de que foi o poder instituído – os guardiões da moralidade, detentores da sã doutrina, intérpretes fiéis das escrituras e impositores da lei divina -quem, efetivamente, se mancomunou com o poder político romano para extirpar a face revolucionária e insurgente de Jesus de Nazaré, que percorria Judéia e Galiléia anunciando um reino em que os homens são iguais, as regras dão lugar à vida e que para ser deus é preciso ser o mais humano de todos.
Acontece que a manipulação sacerdotal, representante do establishment, já conseguiu domesticar a proposta subversiva do Nazareno e retomar de forma escamoteada toda a doutrinação baseada em sistemas de lei e castas, sendo o Sacerdote, ah, ele como sempre, o único ocupante do topo da pirâmide. Assim, os seguidores do cristianismo milenar acabaram comprovando o arremate ácido de Nietzsche: “no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz.”
O esbravejar de televangelistas e políticos [falsos] moralistas, ecoado ad nauseam por sua turba, constitui um tremendo mise-en-scène que camufla suas verdadeiras intenções de dominação. A escolha da sexualidade como inimigo a ser reprimido não é mero acaso, afinal, eles bem entendem que o desejo é a maior potência corrente em nossas veias. Quem domina o desejo, domina o mundo.
Nilton Bonder afirma que ‘o inconformismo das pessoas diante dos que estão em processo de rompimento com conceitos e propostas do passado também decorre do medo e desconforto produzidos pela identificação com essa postura.’ Assim, os movimentos inquisidores contra os hereges e a caça às bruxas, hoje traduzidos na resistência aos LGBTT e libertários sexuais, são produzidas no inconsciente, nascidas do temor profundo de ver o poder escorrer por entre os dedos.
O pai não reprime o filho por seus gostos, desejos, vestimentas e aspirações serem simplesmente diferentes, mas por ver o vassalo fugir às ordens de seu amo. Não são os objetos, em si, que afrontam a ordem familiar, mas o ato subversivo de não se sujeitar ao molde imposto pelo chefe e replicado no grupo. O Sacerdote, mestre da religião, e o Pai, mestre familiar, temem os súditos que transpassam suas gaiolas.